Já eram 00:30 desde a última vez que tinha olhado para o relógio em meu pulso. Não sabia o que pensar, ou talvez não quisesse pensar no obvio. Eu amava meu irmão mais que tudo nesse mundo, tanto que passei a vida inteira tentando proteger ele daquele jeito avoado dele próprio. As lembranças que me vinham a mente estavam mais frequentes do que nunca, era doloroso de mais passar por aquilo 100% sóbrio então, sem me importar com a hora, eu dirigi até o bairro mais boêmio de Riviera, o qual não me lembro ao certo o nome. O único detalhe que me apeguei foi a decoração rústica, que me agradava e que, mesmo que por breves segundos, conseguiu me tirar um pouco desse estado atordoado o qual unia angustia, raiva, tristeza e medo de sofrer de novo com a perda quase certa.
A questão é que nem a bebida mais forte estava me fazendo o efeito prometido. A ligação com a realidade estava tão intensificada que tudo que me minha mente conseguia pensar/lembrar/supor/imaginar estava ligada ao que tinha escutado horas atrás da boca de meu avô:
"-PIETRO, RODRIGO NÃO ESTÁ MORTO!" Por meses eu sonhei tanto em ouvir essa frase. Por meses eu vi meu avô sofrer em silêncio, pela morte de Rodrigo. Eu sempre imaginei que no fundo pudesse haver esperança de que ele pudesse ter sobrevivido, mas e se meu avô tivesse dito isso em um momento de emoção? Ele odiava Isabelle, mais do que eu pudera imaginar e eu nem entendera o porquê, entretanto, conhecendo nossa família ele não seria o primeiro mentiroso que eu conhecera. De qualquer maneira eu estava sem saber como agir diante tal situação. Minha única certeza era que eu amava Isabelle e que amava meu irmão.
Sentia-me tão culpado... A teoria da mentira faria mais sentido se meu avô não pudesse me provar que Rodrigo estava vivo. Eu deveria estar explodindo de alegria, mas não estava, pois me sentia como um vilão. Eu tinha me apaixonado pela mulher da vida do meu irmão e sabia que, de alguma forma, ela também sentia algo por mim, e se Rodrigo estiver vivo de fato não posso deixar de pensar quando ela descobrir, como que ela se sentirá? E quando ele descobrir tudo que aconteceu?! Eu não sabia o que fazer. De qualquer forma, a mentira de meu avô tornou as coisas piores para todos. O que Diabos ele tinha em mente? Após aquela discussão, de algumas horas atrás, me recordo de ter subido ao meu quarto para tentar dormir... Mas como pudera?
Eu me lembro de que a primeira coisa que falei, quando ele fez a grande revelação, foi dizer que ele estava louco, mas só vi verdade em seus olhos. Verdades que conseguiam ser ao mesmo tempo cruéis e boas, mas que me doíam o fundo da alma. Eu disse que ele não poderia estar certo, pois eu estava com ele quando jogamos as cinzas de Rodrigo ao vento, e ele disse que aquilo eram cinzas da lareira. Ele ainda disse que me explicaria tudo melhor assim que eu visse meu irmão...
Ele me levaria até Rodrigo... E eu sentia tanta coisa dentro de mim... Tanta culpa, tanto medo... Toda essa ansiedade não me deixava dormir, então depois de passar horas virando de um lado para o outro na minha cama eu decidi levantar e sair para pensar...
Mas que inferno! Por que tinha que ser justo por aquela ruiva destrambelhada que eu fui sentir isso? Isabelle era completamente meu oposto. Teimosa, fiasquenta... Doce... Aquele olhar cheio de esperança, aquele sorriso que conseguiu resgatar a mim mesmo de um lugar que parecia não ter luz, som ou cor... Eu não queria perde-la, mas dor pior seria presenciar o que ela sentiria ao descobrir tudo. Mais cedo ou mais tarde ela se veria em uma situação onde teria que decidir entre eu e meu irmão... Eu nunca pediria isso a ela.
Eu não via as horas passarem... Pessoas chegavam e pessoas iam embora, o céu tomava para si o tom lilás da manhã e eu fica ali pensando e processando tudo que minha mente conseguia... -Ai Deus me ajude a tomar a decisão certa...
Não muito longe daquele lugar, estavam Carolina e Alexandre que haviam sido convocados pelo médico de Júlia para uma conversa sem a presença da menina. Daniel era quem cuidava do caso de Júlia desde dois anos antes de a menina e Carolina se mudarem para morar com Alex. Não tendo mais de 30 anos, Daniel tinha cabelos medianos e loiros. O medico se aproximou de Alex e Carolina que os aguardavam pacientemente. -Peço desculpas se me demorei... -Tudo bem doutor, apenas nos diga o que precisa...
-Bem... Júlia é uma menina muito forte, inteligente, esperta, com toda certeza, principalmente cheia de vida. Entretanto venho reparado que há algum tempo a menina não anda respondendo ao tratamento da quimioterapia como deve. Foi feito uma bateria de exames numa das últimas vezes que vocês vieram aqui, a fim de ver o porquê do tratamento estar começando a falhar...
-Deus, então o tratamento não está mais fazendo o efeito esperado? O que Júlia tem?_ Disse Alexandre com tanta apreensão que mal conseguiu segurar as palavras saídas com rispidez de seus lábios.
-Sua filha tem o que chamamos de cromossomo Philadelphia, que podem ocorrer em alguns pacientes que possuam leucemia linfoide aguda, como o caso de Júlia. Nós geralmente sugerimos a troca de tratamento, mas receio que para o caso de Julia o melhor seria um transplante de medula.
-Meu Deus do céu! Façamos isso agora! É da minha filha que estamos falando! No fundo Carolina sabia que tinha algo de errado, seu instinto materno lhe avisava para ficar de olho em Júlia... Seus olhos mais uma vez falharam em manterem-se fixos, começando a chorar de medo...
-Peço desculpas se de alguma forma pareci leviano, as chances de sua filha são boas, a maioria dos pais são compatíveis, mas preciso seguir com o protocolo e testar o sangue de ambos. É importante para Júlia obtermos certeza.
Apesar de todas as coisas que rodeavam minha mente eu ainda não conseguia de parar de pensar em Isabelle. O que ela estaria fazendo agora? O que estaria pensando? Conhecendo um pouco aquela cabeça de fósforo poderia dizer que estava sem saber como agir. Se bem que não precisava ser nenhum Einstein para deduzir isso. -Se você tentou me assustar, saiba que falhou! -Como sabia que era eu, Irene? -Agora eu sei que é você, antes só sabia que era alguém pelos passos. -Você tem uma audição e tanto! -Hahahah.
-Na minha época eu não usava esses fones de ouvido que vocês usam hoje em dia, isso me garantiu minha audição de uma mulher de 30 anos hoje! E minha alimentação um corpo de uma de 20, mas isso não vem ao caso!_ Disse Irene preparando uma de suas especialidades veganas.
-E digo mais! Se você pedir com jeitinho, te conto meus segredos culinários que vão te garantir esse corpo por mais uns 40 anos! Isabelle estava um tanto quando desligada da realidade que nem havia percebido que Irene tentava dialogar com sua pessoa, até ter sua atenção obtida depois da insistência dela. -Isabelle!!! -O que? Desculpa Irene eu me distraí...
-Eu estou vendo que você está pensativa, o que há? -É complicado Irene... Aconteceu uma coisa que não sai da minha cabeça... Uma coisa tão linda, parecia que não havia momento mais perfeito para ter acontecido, mas parece tão errada... Me sinto mal por sentir algo que me faz tão bem...
-Isabelle, não seja tão subjetiva, minha cara, o que aconteceu? O que está lhe sufocando? -Tudo bem, eu acho que não há outra explicação mesmo, então falarei logo: Eu to completamente apaixonada por Pietro... E ontem nos beijamos após ele tocar piano para mim... Foi tão inexplicável, foi intenso e único. Entretanto eu me sinto tão mal... Parece que estou traindo Rodrigo... Se Rodrigo tivesse vivo eu me sentiria assim por Pietro? É horrível imaginar que eu poderia me sentir atraída por outro sendo que estaria com o grande amor de minha vida... Você entende?
-Meu amor, você está sofrendo por que motivo? A vida está te dando uma nova oportunidade e eu te digo agarre com unhas e dentes! Você fez o cabeça dura da família Perini voltar a tocar piano, eu ainda estou assimilando isso... Rodrigo faleceu, não tem como saber o que teria acontecido se o acidente não tivesse ocorrido, por isso, não se apegue "no que teria acontecido", mas "no que pode acontecer" de bom se você se permitir viver isso que está nascendo entre vocês... Vocês fazem bem um para o outro, percebi isso naqueles dias em que ele veio até aqui para te ajudar a estudar... Isabelle está na hora de você desapegar de vez do passado. Dê uma nova chance ao amor. Você não estará traindo Rodrigo, você estará seguindo em frente e garanto que era isso que ele iria querer...
Isabelle sentia-se consideravelmente mais aliviada depois de desabar com Irene, pois para ela era como se estivesse conversando com sua mãe, logo a ruiva dava grande importância para a opinião daquela senhora bem humorada e com o sorriso mais caloroso do mundo que um dia havia ajudado uma completa estanhada, não apenas a reencontrar um alguém, mas a reencontrar ela mesma. Isabelle começava a enxergar as novas possibilidades ao lado de Pietro... Estar com Pietro era poder amar sem as amarras que antes a sobrecarregavam de medos e dúvidas... Era se tornar adulta de fato, ser responsável por ela mesma e poder se apaixonar pela música mais uma vez... Bastava agora ela criar coragem de falar tudo que seu coração sentia para o charmoso pianista dos olhos azuis.
Devia ser umas 14h quando finalmente levantei daquela cadeira do bar. Se me perguntassem, eu não saberia dizer se o que senti ao levantar foi uma tremenda tontura provocada pelas incontáveis bebidas que havia ingerido, ou se fora o grande vazio que crescia a cada hora em meu interior. Talvez a junção de ambas? Quem sabe? A questão é que eu não teria paz por um longo tempo. Podia sentir meu corpo me avisando... Era tanta pressão sobre meus ombros, que nem uma figura familiar chamara minha atenção ao se aproximar. -PIETRO! Hey, cara, o que faz aqui?
-Mauro... Eu poderia perguntar o mesmo. Você não está com Luana, ou algo assim? -Estou, mas não do jeito que queria estar... Ainda não... Aliás, foi a própria que me mandou até o fim do mundo atrás de um vinho para o molho da macarronada... É o prato preferido de Giovana e em alguns dias ela faz aniversário... Você ta bem cara? -Eu... Na verdade não... Mauro, se eu não falar com alguém sinto que vou explodir... -Eu tenho tempo, pode desabafar cara, o que está acontecendo?
De fato eu acredito que naquele momento eu estava a beira de um ataque do coração, tive muita sorte de um rosto conhecido ter aparecido para me ajudar a esvaziar minha mente, tóxica, que explodia de pensamentos misturando culpa, raiva, tristeza, rancor e até mesmo, amor... Todos esses sentimentos presentes ao mesmo tempo, lutando entre si estavam deixando-me louco... Prisioneiro de mim mesmo. -Pietro, o que houve? Por que está tão perturbado?
-Mauro... Você se lembra o quanto eu gostava de meu irmão, não lembra? Você deve imaginar como eu devo ter ficado quando soube de seu acidente... -De fato sei... O boato é que você não chega mais perto de pianos... -Foi mais o menos isso...
Como é duro lembrar desse dia. Foi o pior dia de minha vida, mas não da para fingir que não aconteceu. Por que Rodrigo tinha a mania de mudar os planos em cima da hora? Por que ele não pode esperar somente mais algumas horas para entrar naquele maldito carro e seguir viagem? Eu me lembro de sua ultima ligação avisando-me de sua mudança de planos, e já naquele momento criei antipatia com a tal garota, a qual ele vivia falando ser o grande amor de sua vida, e que hoje me faz sentir tudo de mais incrível que eu posso sentir... Ao ouvir as primeiras rajadas de vento naquela noite sem fim, eu já perdera o meu sono, algo estava errado, o destino de Rodrigo estava traçado definitivamente após eu ouvir seu último "Adeus" naquela noite fria e chuvosa... Pelo menos até ontem eu achava isso... Falei de Isabelle para Mauro. Falei tudo desde que nos conhecemos, como ela me transformou e como, por Deus, eu tentei lutar contra a vontade de beijar aquela boca tagarela... Eu era alguns anos mais velho que ela, já tive meus relacionamentos, que sempre terminavam de uma unica maneira, o qual nenhum dos dois sentia nada... Acho que essa sempre foi a principal diferença entre Rodrigo e eu. Enquanto ele era um romântico incorrigível, eu era realista e bem cético sobre sentimentos.
-Pietro, eu vou ser franco... Você e a tal Isabelle não tem nada haver mesmo, cara, mas... Isso que você me falou, da maneira que você me falou, olha, é raro as pessoas sentirem isso hoje em dia. E é por isso que eu te digo, não deixe escapar essa oportunidade em um milhão... Se for para correr riscos, que seja ao lado de alguém que desperte toda essa poesia em seu coração, meu amigo músico. Me diz o que te impede? É a culpa? Rodrigo ia querer que sua amada seguisse em frente, e seu irmão sentisse paz... -Não é tão simples... -O que é? -Fiquei sabendo ontem... -O que? -Eu fiquei sabendo ontem que meu irmão não morreu no acidente... -Isso quer dizer que... -Exato. Rodrigo está vivo. Passou todo esse tempo em coma... E meu avô escondeu tudo isso de mim...
Mauro ficou pasmo após eu contar o resto dos acontecimentos, mas em compensação eu sentia-me consideravelmente mais aliviado. Levantamos da mesa onde estávamos e caminhamos para longe dela. O horário se aproximava e em breve eu iria ver com meus próprios olhos a verdade que meu coração relutava em aceitar... Eu pedi discrição a Mauro sobre nosso diálogo, ainda teria que encontrar as palavras adequadas a serem ditas para todos os envolvidos... Principalmente meu irmão e Isabelle...
-Claro que eu manterei em segredo, Pietro! Eu nunca falaria para ninguém de um assunto tão delicado... -Obrigada Mauro... Eu lhe sou grato... -E você já viu seu irmão? Como ele está? -Eu ainda não o vi... Vou com meu avô para o hospital após sair daqui...
-Bah cara... Eu acredito que não há nada que eu possa dizer alem de lhe desejar boa sorte, não é? -Valeu, Mauro! Eu sou grato por você ter conversado comigo... Eu acho que ia acabar fazendo alguma bobagem se guardasse tudo para mim... -Não tem problema, cara, quando quiser, "estamos ai"...
A hora chegara. Despedi-me de Mauro, que se revelara estar mesmo bem diferente do que aquele que conheci a mais ou menos uma década atrás. Se essa mesmo fosse sua personalidade, acredito que, dependendo dos acontecimentos futuros, poderíamos nos tornar amigos... Eu jamais soube o motivo de seu sumiço de fato, mas após aquele dia, há alguns meses, em que ele retornara, soube que alguma coisa ele havia feito de muito errado... E que envolvia até meu irmão no meio... Mas isso seria algo que eu resolveria alguma outra hora...
-Chegou a hora de enfrentar...
Eu não conseguia dizer uma só palavra enquanto permanecia ao lado de meu avô durante o trajeto ao hospital. Sua mentira foi monstruosa. Eu não conseguia imaginar um único motivo para tal ato provido de tamanho egoísmo... Eu ainda não revelara para ele, mas noite passada seria a última que eu passaria sobre o mesmo teto dele. Depois daquilo, eu seria obrigado a encontrar outro lugar para viver, coisa que a anos devia ter feito.
-Você pretende falar comigo alguma hora, Pietro? Está parecendo uma criança desse jeito... -Por favor, não me dirija a palavra. -Eu entendo que esteja furioso, mas no momento que passarmos por aquela porta, você vai ver que toda essa raiva vai passar...
Ao chegarmos na porta do quarto, eu permaneci parado e deixei meu avô cinco passos a frente. Fechei meus olhos e meu coração se apertou quando ouvi sua voz... Pensei que nunca mais fosse ouvir... Estava um pouco rouca e mais lenta do que eu podia me lembrar, mas tive certeza. Era Rodrigo... Apenas cinco passos de distância de mim... -Vô, que bom que o senhor veio... -Rodrigo, vejo que está melhorando, já consegue mover seu braço sem dificuldade... -Não é bem "sem dificuldade", mas começo a pegar o jeito... -Eu tenho uma surpresa para você, meu neto...
-Eu ficaria feliz em saber que é comida, eu lembrei que adoro comer batata frita... -É bem melhor que comida, meu caro... -O que é? Onde está? -Veja você mesmo...
E então eu pude finalmente ver com meus próprios olhos... Lá estava ele... Sentado na poltrona ao lado de sua cama... Me olhou de cima a baixo semicerrando os olhos, como que se soubesse que me conhecia, mas tentava lembrar-se de onde. Ele ficou serio por alguns instantes, desviando o olhar para meu avô, como que procurava uma resposta em seus olhos, até que seus olhos retornaram a minha imagem acompanhados de um largo sorriso... -Deus... Você é meu...
-Sou eu, Rodrigo... Seu irmão mais velho... Pietro!